
Ribamar Viegas
O VELÓRIO DO CURADOR
Zequinha só tinha boca para falar das façanhas de um tal Januário, sujeito recém-chegado ao povoado de Buriti, na Chapada Maranhense.
? Esse é cabra macho! ? garantia Zequinha garboso da camaradagem que fizera com o forasteiro. Zequinha afirmava ter conhecido Januário numa festa risca-faca lá para as bandas de Coivaras, no sertão do Piauí, oportunidade em que Januário encarou três cabras da peste. Dois ele mandou para o inferno no ato, o outro ficou bem encaminhado. Eufórico em suas eloquências, Zequinha afirmava ser Januário um destemido caçador de onça pintada e divertia-se pegando cascavel com a mão. Adorava uma cascavel na brasa. Dizia que o argumento de Januário era uma temível faca peixeira de18 polegadas, afiada dos dois lados, e a origem de tanta bravura Zequinha justificava, exaltando ser Januário filho do temido cangaceiro Jararaca, do bando de Lampião, com uma quenga pernambucana conhecida por Severina Mata Sete (sem dúvida, uma boa linhagem).
A noite chegou tétrica ao povoado de Buriti e, com ela, a notícia da morte do preto velho Cipriano, curador de comprovados poderes na Região ? aliás, essa não era a primeira vez que Cipriano morria. Uma rapariga de nome Luzmira garantia já ter encontrado Cipriano morto na choupana dele e, ao retornar com outra prostituta conhecida como Chica Gaga na Telho, para providenciar o velório, deparou-se com o preto velho no terreiro da morada, tranquilo, bebendo chibé ? a partir desse dia Luzmira e Chica promoveram-se de prostitutas para protestantes.
Apesar da noite trovejada, o povo foi chegando e se comprimindo no interior da choupana, em volta do corpo do curador que jazia sobre uma mesa. Cipriano tinha os olhos semiabertos, as mãos atadas sobre o peito e duas mechas de algodão metidas nas narinas. Uma vela vermelha que queimava próxima a cabeça do curador (única luz na choupana) dava um toque macabro ao ambiente. O calor era intenso e a respiração ali era ofegante. Zequinha não saia de perto de Januário que, cabreiro num canto, dividia com o morto as atenções dos demais. Do lado de fora, um cão de olhos vidrados, emitia uivados de causar arrepios.
O carpinteiro Juventino Boa Bunda ? responsável pela confecção do caixão, foi o primeiro a notar que os dedos da mão do defunto, lentamente, começavam a se mover. Em seguida, foi o vaqueiro Mauricio Fede a Vaca e, de cotovelada em cotovelada, logo todos perceberam o inusitado. Houve um princípio de alvoroço, culminando com o pânico total, quando Cipriano espirou as mechas de algodão das narinas, desatou as mãos e, repentinamente, levantou-se provocando o apagar da vela.
Aquilo que seria um velório transformou-se num salve-se quem puder. A busca alucinante de todos ao mesmo tempo, à única saída da choupana, provocou uma verdadeira catástrofe. Foram pernas, braços, costelas... quebradas. Gritos de dor e de pavor rompeu o silêncio da madrugada. Uma vez fora, a caboclada esquecia as contusões e batia recorde de corrida com obstáculo... era gemido para todos os lados.
O dia raiou em Buriti e, lá pelas dez horas da manhã, os mais corajosos foram voltando e se agrupando nos arredores da choupana de Cipriano. ?Pareciam procedentes de uma guerra perdida. Todos no bagaço. ? Mas e Januário? ? alguém perguntou.
Zequinha, com o nariz quebrado e um olho roxo, balbuciou:
? Corajoso como ele é, deve ter ficado lá dentro e enfrentado sozinho a assombração!... Aquele não teme nem alma do outro mundo!...
Capitaneados pelo guarda municipal Gimico, o grupo aproximou-se e espiou cautelosamente para dentro da choupana.
Viram o preto velho Cipriano ? que na verdade fora acometido de mais um dos seus ataques de catalepsia (doença nervosa caracterizada pela imobilidade do corpo e rigidez dos músculos) ? sentado num “mocho”, pitando cachimbo, indiferente aos acontecimentos daquela noite, velando o corpo do “bravo” Januário que morrera ? para decepção do quimérico Zequinha ? todo cagado de medo.