Sertão Hoje

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Ribamar Viegas

BIRA NO VELÓRIO

Bira beirava 1,50m de altura, barrigudinho, amarelo, cabelo ralo, cabeçudo e beiço inferior apontando para onde os olhos viam. Bira era um copo valente. Bebia todas e mais algumas. O habitat de Bira era o Bar Cana, cujo proprietário era denominado de Bufa-Torta, pelo fato de andar mancando devido a um sinuoso defeito na coluna vertebral. Os demais frequentadores assíduos daquele bar eram: Remelexo, que tinha uma perna menor e mais fina, por isso andava remexendo. Pepedro, quando bêbado, encarnava um poeta lírico. Xaxado, era o mais preto do grupo. Manso, de pouca conversa. Concordava ou discordava sempre balançando a cabeça e Carica, branco, alto, narizinho pontiagudo, testa diminuta e uma vasta cabeleira, feio!... Era quem bancava a cachaça dos que bebiam com ele.

O tempo passou, e Carica, o boa paga do grupo, resolveu passar para o andar de cima... morreu de cirrose! A notícia da morte de Carica pegou seus quatros parceiros de gole de surpresa. Pareciam quatro navios em alto mar à deriva, sem porto seguro para ancorar. O chororô no Bar Cana foi comovente. E haja cachaça! Naquele dia, tal qual uma bandeira a meio mastro em luto oficial, o Bar Cana ficou com a porta entreaberta, recebendo só os íntimos do falecido. Além da dor da grande perda, Bira, Remelexo, Pepedro e Xaxado choravam mais alto por não poderem participar do velório de Carica por falta de roupas adequadas para a ocasião. Comovido, Bufa Torta emprestou suas roupas limpas e engomadas aos quatro pinguços. As camisas deram certo, Bira ficou parecendo estar de sobretudo, porém calça, só deu certo em Remelexo, por ter uma perna mais curta, aleijão compatível com o do proprietário do Bar Cana.

Os cinco bêbados – incluindo Bufa Torta − chegaram ao velório de Carica por volta das 20h. Muita gente dentro e fora da casa. Carica era ex-funcionário público e muito conhecido na cidade. Dona Eulinda, a viúva, muito chorosa, sempre ao lado do caixão.

Remelexo, o mais composto, de calça e camisa limpas, deu as ordens:

? Bira, entra na frente e reverencia a viúva! Pepedro, eu e Xaxado vamos logo atrás e faremos o mesmo. Bufa Torta, passa direto para o quintal com o garrafão de cachaça e nos aguarda lá.

Bira entrou e, sob os olhares atônitos dos presentes, dirigiu-se à viúva:

? Senhora, meus parabéns!!

Dona Eulinda, pasma, prontamente o advertiu chorando:

? Moço, eu termino de perder meu querido esposo e o senhor vem a minha casa me parabenizar?... Que despropósito é esse?...

Rapidamente, o poeta do grupo, Pepedro, intercedeu:

? Senhora, Carica era como um rio perene, uma flor de pessoa, e a senhora, o perfume dessa flor, por isso os parabéns... de Bira e nosso!  

? Quem é Carica?... Meu falecido esposo chama-se Juvenato! Vocês estão em velório errado!

? Não, senhora. Estamos no velório certo. Juvenato Carica era o nosso maior amigo! Como dizia o primo Castro Alves: “Uma íris no pélago profundo!”.

Só aí Dona Eulinda se tocou que estava diante dos companheiros de cachaça do marido. Dos malditos. Verdadeiros culpados daquele velório. A mulher sentiu vontade de botar o grupo pra rua a vassouradas, mas, diante da circunstância, preferiu manter a postura e deixar a corja malocar-se no quintal. Pelo menos não apareceriam na sala fúnebre. Bira foi muito elogiado pelos demais pinguços por ter parabenizado a viúva, pela sorte de ter se casado com o melhor camarada do mundo.

Por volta das 10h da noite, o garrafão havia secado. O grupo resolveu fazer uma vaquinha para comprar mais cachaça. A viúva pressentiu do que se tratava e, receosa de que aqueles bêbados fossem pedir dinheiro na sala, entregou dez reais para Bira, dizendo:

? Toma, pode ir comprar mais cachaça para vocês!

Bira recusou o dinheiro no ato e retrucou com o dedo em riste:

? De jeito nenhum aceitamos o seu dinheiro!... A senhora já deu o defunto!

A vaquinha rendeu R$ 10,50. Pepedro ordenou:

? Bira, vai ligeiro! Compra dez reais de cachaça e cinquenta centavos de pão!

Bira, com o biquinho aguçado, queimou ruim:

? Não sei para que tanto pão?!

? Para comermos com cachaça! ? redarguiu Pepedro ? não comemos nada desde a notícia!

Bira, muito bêbado, caminhou batendo-se contra o corredor para fazer as compras, foi quando aconteceu o que Dona Eulinda mais temia: um daqueles bêbados na sala. Bira, ao ouvir uma música, adentrou a sala, dirigiu-se a uma dama de longo preto e solicitou:

? Madame, me dá o prazer dessa dança?!

A resposta:

? NÃO!!!

Bira:

? Por que não?

? Primeiro, o senhor está bêbado! Segundo, isto é um velório! Terceiro, não se dança Pai Nosso! Quarto, não sou madame!... Eu sou o padre!!!