Sertão Hoje

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Colunistas

Ricardo Stumpf

Ricardo Stumpf é graduado em Arquitetura, com especialização em Desenho Urbano, Mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia e especialização em Lingüística: leitura e produção de textos pela Universidade do Estado da Bahia (2007).

Martírio

Assistir ao documentário Martírio, sobre a luta dos índios Guarani-kaiowá pela reconquista de suas terras, em Mato Grosso do Sul,( Direção: Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho; Elenco: Celso Aoki, Myriam Medina Aoki, Oriel Benites) é revisitar uma tragédia antiga e tantas vezes denunciada.

Apesar disso, ver seus rostos, entrar junto com os cinegrafistas em seus acampamentos (em diferentes épocas) e assistir aos ataques de pistoleiros pagos por fazendeiros, nos dá uma dimensão real da luta pela sobrevivência desses índios, que pela Constituição deveriam ter seus direitos resguardados e serem amparados pelo Estado brasileiro.

O longo documentário (2,40h.), nos mostra com detalhes a história, o cotidiano dessa luta e as agruras de um povo, que ao contrário do que dizem nossos livros de história, não foi, mas é uma etnia que habita o sul e sudoeste brasileiro.

Aliás, o que o documentário não delimita com clareza é a quantidade de guaranis e descendentes, existentes no cone sul da América do Sul. Eles foram e são um grande povo, contando hoje em dia com cerca de 450.000 indivíduos, que vivem no Brasil, no Paraguai, na Bolívia, no Uruguai e na Argentina.

Para quem não sabe, a maior comunidade guarani não está no Paraguai, nem no Brasil, mas nas terras baixas da Bolívia, com quase 200.000 representantes. No Brasil estão espalhados pelos estados de Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso, principalmente, havendo ainda pequenas comunidades no estado do Rio de Janeiro e no nordeste.

Quando os europeus chegaram, os guaranis ocupavam o litoral atlântico, desde o Rio da Prata até o Maranhão e as grandes planícies interiores. Sua influência se estendia por um território tão grande quanto o dos Incas, com quem rivalizavam na fronteira entre as terras altas dos Andes e a floresta tropical.

A desculpa que os fazendeiros utilizam para ocupar as terras indígenas, é a de que não existem mais índios no local e que esses que invadem as fazendas, dizendo-se guaranis, seriam apenas brasileiros sem-terra querendo ocupar suas propriedades, porque se vestem e agem como a maioria dos brasileiros.

Mas o que faz alguém se identificar como índio, ou mesmo como brasileiro, não são as suas características físicas, nem suas roupas e hábitos, e sim o seu próprio reconhecimento de pertencer a uma comunidade. Se um baiano negro, se encontrar com um gaúcho louro no exterior, eles não se reconhecerão como brasileiros, apesar de se vestirem, falarem e terem características étnicas diferentes?

A cultura brasileira de hoje não é a mesma de 50 ou 100 anos atrás. Nem por isso os brasileiros de hoje, são menos brasileiros que os de 100 anos atrás, apenas são brasileiros contemporâneos, porque a cultura está sempre mudando, sempre evoluindo.

Então, a identidade é a percepção da continuidade de um processo, de um fluxo, de uma memória. Não é um conjunto de traços raciais ou culturais, e sim a possibilidade permanente de gerá-los em sistemas que estão sempre mudando.

Querer que os índios se comportem como há 500 anos atrás, para reconhecê-los como índios, é apenas uma desculpa para roubar suas terras.

Mas mesmo desconsiderando essas questões antropológicas, as diferenças étnicas entre os fazendeiros e os guaranis ficam evidentes no filme, na cena em que os proprietários rurais se reúnem para combater as invasões indígenas, com a participação de vários parlamentares, todos brancos, dentre eles Ronaldo Caiado e Kátia Abreu, antiga ministra de Dilma Roussef.

Nessa reunião, um dos fazendeiros chega a dizer, indignado, que no gabinete de Dilma havia índios, negros e até uma lésbica, revelando a mentalidade fascista, racista e homofóbica, que impera entre eles.

Interessante observar esse fato, numa região que serviu de refúgio para vários criminosos nazistas depois da segunda guerra mundial, a ponto de um historiador comentar que o Rio Paraná, na fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, se tornara um verdadeiro "rio alemão".

Os descendentes desses alemães, continuam se considerando como tais, embora sejam da terceira geração nascida no Brasil, reafirmando exatamente aquilo que negam aos guaranis: sua identidade étnica.

Os guaranis que resistiram a espanhóis e portugueses, hoje parecem resistir ao que sobrou do Terceiro Reich, cujos representantes, se pudessem, mandariam exterminá-los nas câmaras de gás em nome do velho sonho desacreditado da "raça superior".