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Academia Caetiteense de Letras

Esta Coluna é produzida pelos integrantes da Academia Caetiteense de Letras (ACL) e os seus convidados e tem por objetivo compartilhar com o público discussões relevantes sobre temas da atualidade, sob a ótica acadêmica e literária.

Para que serve a poesia? (Parte final – O Relatório)

Por Fábio Silveira
Com Fabiano Cotrim
Dialogando com o Silogeu - ACL

Saudações olímpicas a todxs!

 

A pandemia endoidou o mundo deveras, é julho de 2021 e assistimos, ao vivo, aos Jogos Olímpicos de 2020, certamente uma fenda temporal, um buraco de minhoca, um big bang de universo paralelo, um LSD, algum fenômeno extra ou intraterrestre, a fucking fact happened, no doubt! Um problema dessa envergadura para resolver, uma olimpíada para vencer, um vírus para derrotar, mortos para enterrar, um povo para vacinar e nós, cá, preocupados com questões de somenos. Por que haveríamos de gastar uma só sinapse para trazer uma resposta à nossa capitular indagação, para que serve a poesia? Por quê?

Para que serve a poesia? Essa pergunta, quem trouxe à superfície foi Mano, o poeta, fê-la em um poema perdido n’algum guardanapo ou pendrive ou nuvem, esta última bem mais provável, posto que os poetas, por natureza, são nefelibatas, por isso, faço denúncia que o referido poema deveria compor esse relatório, anexado como elemento circunstancial do conjunto probatório e...

O poema, misteriosamente desaparecido, de Mano – Para que serve a poesia? – serviu de inspiração para Fabiano Cotrim, o cronista, enveredar-se no gênero narrativo, propondo um conto ou talvez uma novela de folhetim, considerando a apresentação dos primeiros rascunhos revelados.

Tão boa era aquela ideia que designei, temporariamente, toda a atividade do meu ad aeternum (um dia, Mein lieber Freund herr Koehne vai me resolver essa pendenga desse negócio de ad aeternum) para aproveitar a pergunta, para que serve a poesia? e tentar respondê-la ao modo universitário, para não dizer acadêmico e misturar as bolas, porque, aqui, acadêmico é imortal (veja, Mr. K, está começando a fazer sentido – imortal/ad aeternum).

Vi, na proposta de Cotrim, uma boa história, com um mote espetacular, de amplitude bastante significativa. O enredo abriu um mistifório de possibilidades para ser contado, com exercícios vadiando desde os heptassílabos tradicionais da Literatura Brasileira de Cordel até as épicas redondilhas camonianas, de um roteiro promissor para cinema a um denso romance de suspense, de um monólogo performático a um musical do teatro, enfim, uma ideia daquelas, porreta mesmo.

Eu, muito particularmente, vi, no protagonista daquela história interessante, uma semelhança bem cristalina com o grande Gabriel Garcia Lorca, um bitelo dum poeta espanhol.

– Mas profe, Garcia Lorca era pacifista, homossexual, como pode mal compará-lo desse jeito, Tunim arremessava capas duras e grossas brochuras com precisão de um herói olímpico e nem era atleta, era poeta, dizem que transformou a poesia em um instrumento mortal e sanguinário.

– Sei não, mas essas verdades não faziam Lorca menos ou mais poeta que ninguém, era poeta, era bom e pronto!

– Sim, mas... e daí? O profe sabe que o espanhol não se envolveu em crimes.

– Sei, não matou pela poesia, mas morreu pelas coisas que escrevia.

– Como!?

– Lorca foi assassinado, mais precisamente, fuzilado por agentes de um governo, uma ditadura militar, facista, que perseguia e matava poetas, artistas, ativistas por direitos humanos, ambientalistas, defensores das minorias e, com a mais cruel violência, intelectuais divergentes e políticos opositores. Era um governo muito obscurantista aquele fascista de extrema direita, tipo o governo do Brasil/2021, a diferença que aqui, os livros são queimados por milícias das mídias virtuais, mas os poetas pretos e pobres da periferia, especialmente os caras da rima, do Rap, continuam sendo executados, chacinados covardemente.

– Sim, entendo, então Lorca escrevia contra o regime de... como é mesmo o nome do ditador?

– Mui bien, escucha mi consejo, compañero. Acesse o google, pesquise “garcia lorca”, o google aceita minúsculo, navegue por alguns resultados, o google vai apresentar muitos, você vai gostar e vai saber o nome do assassino de Lorca, o google revela tudo. Depois, se fores chamado ao interesse, pela mesma ferramenta de internet, compre um livro de Gabriel Garcia Lorca, leia-o e faça o livro circular, emprestando-o a outrem. O primo Alberto, um poeta aqui da vila, dizia: “os livros morrem na estante, só a leitura pode revivê-los”.

Para quem quer se aproximar do gênero Teatro, especialmente como autor, a leitura de Lorca é tão determinante quanto a de Shakespeare, isso só para começo, pois tem é coisa para se ler até chegar nos “200 jogos e exercícios de Boal” (risos). Ah, se tiver os poderes da mesa branca e fé, o primo Alberto entende de tudo, de coisas que nem o google entenderia.

– All right, my dear teacher. Então voltemos ao nosso trilho, para que serve a poesia?

Pois sim, encaminhemos, com firmeza, para as conclusões deste relato. Na busca por respostas, faltavam as respostas de uma poeta, uma filha de Eva capaz de pintar o Éden juntando palavras e bordar o mundo com poesia. Tinha que ser mulher e tinha que ser poeta. WislawaSzymborska (1923-2012), essa é boa, é uma que se preocupou como gastar a grana que ganhou com o prêmio Nobel de Literatura em 1996, uma polaca arretada.

Ciente do temperamento instável dos poetas, fui direto ao ponto com a premiadíssima escritora:

- Hi, Mrs. Szymborska! What is poetry for?

Surpresa, Wislawa respondeu.

- Hã!? Poetry? May I answer you in portuguese?

- Of course Milady...

Foi aí que a Dona Szymborska abriu um livro e trovou.


Alguns gostam de poesia

Alguns -
quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve
e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
gosta-se de fazer festas a um cão.

De poesia -
mas o que é a poesia?
Algumas respostas vagas
já foram dadas,
mas eu não sei e não sei, e a isto me agarro
como a um corrimão providencial.


Boa essa Wislawa, não? Pois é, também gostei, já que ela esclareceu também que uma das serventias para a poesia é ser gostada, não por todos, mas gostada, isso é fácil, tem cada uma bacana.

Encerrados os debates, juntadas as evidências, catalogadas as provas, taquigrafadas as audiências, chegou o esperado momento de se proferir o veredicto e determinar a sentença. Coube a um poeta português, Manuel António Pina (1943-2012), dar voz a tais peças. Pina também era um poeta que sustentava sua família com a grana dos prêmios que recebeu por conta dos poemas que escrevera. Estava bem preparado para a tarefa e, assim, proclamou o resultado final com sua peculiar desenvoltura.

Quem esperava um certo corporativismo, até mesmo uma tênue parcialidade, já que o referido causídico também era poeta, teve a expectativa frustrada já nas primeiras falas. Pina determinou algumas medidas cautelares, entretanto, pediu vistas para reler toda poesia do mundo, adiando a conclusão do julgamento, vejam o que ele fez constar dos autos:


A poesia vai acabar

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: “Que fez algum
poeta por este senhor?” E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —


Mas não pensem que tudo acaba aqui, está liberada a impetração de recursos em todas as instâncias e fica também permitida, agora com os confrades e confreiras do silogeu, a apresentação de novos fatos e argumentos que possam esclarecer para que serve a poesia. Com isso, o trânsito em julgado dependerá de quem quiser seguir com esse mote. Eu, paro por aqui...

Caetité, julho de 2021.