Sertão Hoje

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Academia Caetiteense de Letras

Esta Coluna é produzida pelos integrantes da Academia Caetiteense de Letras (ACL) e os seus convidados e tem por objetivo compartilhar com o público discussões relevantes sobre temas da atualidade, sob a ótica acadêmica e literária.

A Gramática e o Poeta

Por Fábio Silveira

Dialogando com A. Koehne e H. Gumes

Salve todxs!

Será sobre a gramática, ou as gramáticas, certamente, são várias. Verificando, do ponto de vista didático, têm-se a gramática normativa, a descritiva, a histórica, a comparativa, a natural e outras gramáticas, o certo é que todos os estudiosos do tema admitem essa pluralidade.

A gramática natural é o alvo aqui, por enquanto. Um falante estrangeiro percebe a gramática natural, seja lá em que língua for, ao iniciar o aprendizado da nova língua. Institivamente, sistematiza a fala de uma forma bem linear. Afirmar, negar e interrogar é o básico, a intensidade com que essas três coisas acontecem serão determinadas por adornos gestuais e artifícios linguísticos sonoros, primeiro, os originais do falante e depois da interação coletiva na sua comunidade de fala. Na produção literária seria a, inevitável, intertextualidade.

Para apoiar o discurso, a gramática natural, ainda oferece mais veredas, mais exigências são necessárias, conceitos como singular e plural, presente passado e futuro, além das três pessoas do discurso obedecerão a convenções estabelecidas na comunidade de fala, iniciando a normatização e, com isso, demonstrando, claramente, que a variedade de falares não significa que estejamos sob um caos linguístico, uma gramática original traz uma organização absolutamente eficaz para a comunicação. Por isso que, na escola, sempre será compartilhada a gramática normativa, a qual, somar-se-á, agregando positivamente, a uma gramática natural, anteriormente, internalizada pelo falante. O pensamento de Luft, essa autoridade linguística, expresso adiante, vem corroborar com a validação dessa afirmativa:

"A gramática dos falantes é sempre completa: sistema de "todas as regras" necessárias para se poder falar. Mesmo a criança de cinco ou seis anos já fala com desembaraço, e o mais humilde dos analfabetos, necessariamente domina a gramática completa que preside seus atos da fala. Do contrário, não haveria como falar. Naturalmente, há variantes de gramática, conforme o grau de cultura ou nível sóciocultural do falante; mas todas elas, mesmo a de nível mais baixo, são completas em si, dispõem de todos os elementos de que as pessoas necessitam para fazer frases e comunicar-se." (LUFT, Celso Pedro. Língua e liberdade. 8ª ed., Fundamentos, Ática, 2003).

Contudo, a normatização tem por escopo um propósito social de amplitude muito maior do que simplesmente proclamar a norma padrão como condição sine qua non para uma estética literária aceitável. Aceitável para quem? Para o acadêmico pernóstico e ilegível? Para o cliente das livrarias, ainda que, nos tempos, virtuais? Para quem depende de um projeto social, de uma ONG feito a ACL ou de uma política pública para acessar, minimamente, a obra literária?

Não se negue o lugar comum, mas recorrer a Patativa do Assaré, além do prazer de ler, é bem pertinente para provar que a estética literária independe da GNLP. Abaixo será transcrito, na íntegra, o poema – O Poeta da Roça – para que se perceba a imensidão da generosidade linguística do bardo cearense, ao trazer o falar biográfico de seu personagem, oriente-se que, na internet, é possível encontrar essa poesia em vários formatos, declamada, cantada, encenada entre muitos.

O Poeta da Roça
Patativa do Assaré

Sou fio das mata, cantô da mão grossa
Trabaio na roça, de inverno e de estio
A minha chupana é tapada de barro
Só fumo cigarro de paia de mio

Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestrê, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola
Cantando, pachola, à percura de amô

Não tenho sabença, pois nunca estudei
Apenas eu seio o meu nome assiná
Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre
E o fio do pobre não pode estudá

Meu verso rastero, singelo e sem graça
Não entra na praça, no rico salão
Meu verso só entra no campo da roça e dos eito
E às vezes, recordando feliz mocidade
Canto uma sodade que mora em meu peito

É certo que Patativa tinha capacidade para escrever esse poema seguindo a norma padrão, aliás, essa prática é recorrente nas aulas de GNLP e produção textual, a ‘tradução’ do texto de Patativa do Assaré para a língua portuguesa padrão. Mas Patativa era poeta e poetas não são padrão. Padronizar a poesia, em qualquer de suas virtudes ou pecados, seria como negar a Pessoa, o lusitano, a possibilidade de seus heterônimos. E isso, definitivamente, não se faz, embora se tente, especialmente alguns pressupostos e presunçosos guardiões da língua, cuja guarda consiste em mumificar e encerrar a língua nas sórdidas catacumbas do preconceito linguístico e de outros preconceitos não menos infames.

Então fica assim, na régua da análise literária, a gramática normativa é item opcional, sem deixar, no entanto, de ser um item importante, especialmente sob a ótica da ‘adequação linguística’ (o que é isso? Depois...). Mas não fica nisso, o leitor, simplesmente, lê; não faz análise literária, o prazer da leitura significa; gramática não. O avanço da leitura evolui-se proporcionalmente ao nível sinestésico dispersado pelo tecido lírico. O leitor quer sentir o mel e o fel advindos das entrelinhas, quer, entre os dentes, o crocante do grão de poeira que os ventos do outono trouxeram para a sopa, quer, no mínimo, fingir a dor de amor que o poeta “deveras sente”.

Nesse ambiente, põe-se uma afirmação: para atender a demanda do leitor, seria ridículo, como de fato é, entronizar uma variante linguística como majestade suprema. O leitor que, verdadeiramente, importa não frequenta realeza, e não é por inépcia; é por que ele prefere a vizinhança. Foi assim na tabacaria de Fernando e foi assim no sertão de Assaré. Por aqui eu vou ficando, manifeste-se quem quiser...

Caetité, 04 de maio de 2021.