Fabiano Cotrim
É professor e advogado do escritório "Cotrim, Cunha & Freire, Advogados Associados", em Caetité. Membro da Academia Caetiteense de Letras (cadeira Luís Cotrim), Mano, como é conhecido, gosta mesmo é de escrever poesias, mas, desde os tempos de Maurício Lima, então batucando na sua velha Olivetti Lettera 32, colabora com o Jornal Tribuna do Sertão, sempre nos mandando crônicas.
Os ponteiros apontam para o infinito
Era um rádio de pilha. Grande, de mesa. E consumia muita pilha, sendo seis de cada vez, um carrego, como se dizia, com o “e” anasalado.
- Antônio Eustáquio...!!!
Pronto, pensou ele. Lá vem! Era ela falar Antônio Eustáquio, os dois nomes juntos, que lá vinha bomba.
- Que (i) é isso nos bolsos, Antônio Eustáquio!!!?? Não me diga que é um carrego pra essa porcaria de rádio! Era, e estava nos bolsos justamente para ela não perceber, ou se confundir. O rádio não era porcaria coisa nenhuma.
Era uma maravilha de rádio. Pegava tudo, do mundo todo, um legítimo “Rádio ABC Canarinho, Transbrasil-III, caixa de madeira”, uma beleza de rádio! E ele só ouvia “A voz do Brasil” e os jogos do Botafogo.
E mesmo assim ela reclamava, Se bem que ele também ouvia a “Ave Maria”, pontualmente, diariamente. E ainda não perdia o Padre Vitor Coelho de Almeida com o seu “Os ponteiros apontam para o infinito...”. E era só isso que ele ouvia e mais uma coisa e outra. O Zé Bettio, por exemplo, como perder? Sim, ele sofria de insônia e ligava o rádio quando não conseguia dormir, mas aí nem conta. Ou conta?
- Não bastasse ligar essa porcaria o dia todo e ainda de madrugada, Antônio Eustáquio, eu ainda tenho de ver a conta da água sem pagar e você comprando carrego de pilha fiado na venda, Antônio Eustáquio?
Contava então. Ela falou da madrugada. Era mentira. Ela roncava tão alto que ele tinha que botar o volume quase no máximo pra ouvir o rádio. E de mais a mais a conta de água nem estava tão atrasada assim. Coisa de dias. O de sempre e sempre se dava um jeito. Aliás, foi mesmo isso que ele ouviu Omar Cardosos dizer hoje para Sagitário. “È uma fase, Sagitário, logo a bonança virá. Esteja preparado para dias melhores. (...)” E Omar Cardoso não falhava, e por isso ele ouvia Omar Cardoso todo santo dia, sim. Mas isso não contava. Ele já sabia mais ou menos quando ele ia falar o seu signo e já ligava o rádio na hora do Sagitário. Não contava! Ou contava?
- A única coisa que presta que você ouve nesse comedor de pilha velho é o horóscopo, Antônio Eustáquio. Mas eu sou de Libra, Antônio Eustáquio, e quando você liga no horóscopo, Antônio Eustáquio, Libra já passou
Ai, ai, ai, contava ou não contava? E era mentira. Aliás, era mentira duas vezes. Ela não ouvia por que não queria e ele na verdade sempre esquecia do horário de Sagitário e ligava logo era no começo de Omar Cardoso, todo santo dia, religiosamente.
É de vera, pelo jeito tudo conta para ela. Tudo conta contra o rádio, melhor dizendo. E era isto mesmo, pois se até com o Eli Correia, ela implicava! Bastava ouvir o bordão “Oiii gente”” que ela mandava abaixar o volume, desligar o rádio.
- Então, Antônio Eustáquio, vai ficar aí com esses bolsos entupidos de pilhas e com essa cara de palerma!?
Opa, palerma!? De palerma ela nunca o havia chamado. Chamava de tonto, besta quadrada, aluado, sonso, mas palerma, não...
- Toma tento, homem, vai na venda, devolve essas pilhas agora! E toma aqui a conta de água e vai pagar. Anda, chispa!
Melhor ir, melhor deixar pra lá. Pôs a conta no bolso da camisa e saiu. Fez que fechou a porta e esperou um pouco, espiando pelo buraco da fechadura. Ela foi lá para dentro. Ele entrou, pegou o rádio e saiu. Nunca mais voltou.
Mentira, voltou sim; verdade que ele saiu com a intenção de nunca mais voltar, mas voltou, e voltou logo.
Como não voltar? Era madrugada, ele se virava na cama fria, na casa pequena e solitária em que passou a viver tendo no rádio a sua única companhia. Ouvia o Adelzon Alves que, agora, de fato, era o seu verdadeiro e único “amigo da madrugada”, quando do nada o próprio Adelzon, dizendo que estava abrindo uma exceção, anunciou que já havia recebido mais de cem cartas de uma ouvinte, pedindo para que ele lesse um recado para uma pessoa amada que havia saído de casa. E que o recado era curto, disse o Adelzon, antes de ler com aquela sua voz única e marcante: “Volta, Tõe, e traz o rádio pra nós dois ouvir juntinhos...”.
E viveram felizes para sempre.
Mentira, para sempre não. Até que viessem a televisão e o Tarcísio Meira, sim. Depois daí a história foi outra, mas como foi outra e não essa, FIM