Fabiano Cotrim
É professor e advogado do escritório "Cotrim, Cunha & Freire, Advogados Associados", em Caetité. Membro da Academia Caetiteense de Letras (cadeira Luís Cotrim), Mano, como é conhecido, gosta mesmo é de escrever poesias, mas, desde os tempos de Maurício Lima, então batucando na sua velha Olivetti Lettera 32, colabora com o Jornal Tribuna do Sertão, sempre nos mandando crônicas.
Bela do acarajé
Dos prazeres mundanos a gastronomia é o meu fraco, ou o meu forte, a depender de como se encara a questão. Sou apreciador da boa comida, investigador dos segredos de todas as receitas, admirador confesso da arte culinária, freqüentador de todas as feiras, ávido leitor de compêndios que versem sobre o assunto[1]. Em todo canto por onde passo sempre presto mais atenção à comida que é possível encontrar-se ali do que em qualquer outro aspecto do lugar. Assim é que fui tomado de encantamento e respeitosa admiração por uma iguaria encontrada em Guanambi, o acarajé da Bela. Fina iguaria, diga-se logo, delícia das delícias, acrescente-se.
A primeira surpresa foi encontrar em Guanambi, essa próspera e hospitaleira cidade encravada no sertão baiano, um acarajé melhor e mais bem feito do que a maioria dos que são servidos na capital mundial do acarajé, ou seja, Salvador, Bahia. Salvo raras exceções, os acarajés da capital perdem feio para o acarajé da Bela. Hoje feitos com métodos industriais, havendo até mesmo empresas encarregadas de distribuir a massa para vários tabuleiros, o acarajé soteropolitano vem perdendo em sabor e qualidade. Já o da Bela, não, pois ela segue fielmente os passos para se fazer com acerto a iguaria de origem africana. Massa fresquinha, higiene total no preparar e no servir os bolinhos, recheios cuidadosamente elaborados, arte e ciência na fritura. Óleo de dendê sempre novo, jamais reaproveitado, qualidade nos ingredientes e simpatia no serviço, formam a receita de um dos melhores, quiçá o melhor, acarajés do Brasil.
De tão bom o acarajé da Bela é servido sempre com o mesmo capricho há quarenta anos! Não é pouco em se tratando de um país onde raros são os restaurantes que ostentam tal longevidade. Na Europa é comum restaurantes e assemelhados com mais de século de tradição familiar, aqui não. Aqui a regra é a morte precoce da maioria dos negócios que são abertos, ainda mais quando o negócio é vender alimentos. Abre hoje, fecha amanhã, assim ainda é a regra no setor por estes tristes trópicos. O acarajé da Bela foge a todas as regras, é exceção virtuosa pela qualidade, refinado sabor e pelo esmero da pioneira Belarmina de Souza Nascimento, que aprendeu a arte com a sua irmã, Maria Augusta, mais conhecida como Maria Baiana, que por anos a fio também vendeu os bolinhos de feijão fradinho recheados com vatapá, camarão, caruru para quem gosta de caruru, o que não é o meu caso, regado a forte molho de pimenta, para quem gosta, o que é o meu caso, na cidade de Itabuna, em famosa banca instalada na Avenida Cinqüentenário, artéria principal daquela cidade do sul do estado.
Bela trouxe a arte para Guanambi, décadas atrás, e hoje a sua família trabalha unida, todos os dias, produzindo um acarajé de dar água na boca. O endereço variou ao longo do tempo, passando pela porta do cinema (quando ainda havia cinemas no interior), pela Humberto de Campos, e hoje na Rua Santa Catarina. Só o que não mudou, para deleite de muitos, inclusive para deleite supremo destes escrevinhador, apaixonado por acarajés e abarás - que chega ao extremos de se deslocar de Caetité a Guanambi exclusivamente para comer dois ou mais acarajés da Bela - foi a qualidade dos produtos servidos. E como quem tem competência se estabelece, hoje comanda o negócio Delmira Nascimento da Silva, filha de Bela, seguida pelas gentis e atenciosas Edilvânia, Edilane e Sulamida, alem do pequeno Natanael, de apenas quatro anos, mas que já demosntra pendor para o negócio. Uma tradição familiar, um patrimônio guanambiense. Aliás, uma sugestão aos vereadores da Terra do Algodão, se é que ainda não o fizeram: o Acarajé da Bela tem de ser urgentemente declarado como patrimônio imaterial de Guanambi, por justa causa, por merecimento.
Só o que não estou gostando é de estar escrevendo estas linhas aqui em minha casa, em Caetité, e não poder agora mesmo comer mais um ou dois acarajés com pouco vatapá, algum camarão e muita pimenta. Deixa então eu colocar o ponto final no texto, partir para Guanambi e ir logo para o Acarajé da Bela. Aliás, outra particularidade distingue o ponto de venda dos deliciosos quitutes que só a Bela e sua família sabem fazer dos demais: é talvez a única baiana de acarajé do planeta que distribui senhas para organizar o atendimento nas altas temporadas, tamanho é o movimento, tal é a procura. Querem mais provas de que falo a verdade, de que o Acarajé da Bela é o melhor? Outra hora até posso lhes apresentar mais argumentos, agora não, que agora eu vou ali e volto já, mas não vou buscar maracujá, vou é comer acarajé lá em Bela, antes que acabe, antes que as senhas se esgotem, que eu não sou besta nem nada...
[1] Recomendo, dentre outros: “A História da Alimentação no Brasil”, de Câmara Cascudo; “Não é Sopa”, de Nina Horta e qualquer um escrito pela americana M.F.K. Fischer