Amanda Bonfim
Graduanda do curso de Letras Modernas (Português, Inglês e suas respectivas literaturas), pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Atua como professora de produção textual e cultiva os hábitos da leitura e escrita, não apenas no meio acadêmico, como também por fruição. Engaja-se em projetos de Iniciação Científica e revisão textual.
No endereço errado
Helena estava perdida. Perdida de que não sei. Ela olhava para os lados e não via nada além de si mesma. De repente, se sentiu como se estivesse em uma sala cheia de espelhos, apenas com os reflexos de si mesma. Contudo, os reflexos deixavam de ser reflexos e tornaram-se, cada um, novas pessoas, versões passadas de Helena, que a lembravam da sua infinitude de tentativas de encontrar-se. Nenhum deles encaixou-se no padrão que Helena estabeleceu para si mesma. Esse padrão, porém, era quase inalcançável, pois logo que Helena conseguia algo que desejava, determinava outro objeto de desejo e, assim, ela nunca descansava de verdade; estava sempre em busca da parte que julgava lhe faltar.
Todos os dias, Helena tentava a todo custo se livrar do sentimento de insegurança. Nessa lida, questionou-se inúmeras vezes como fazê-lo. Mudou tudo o que estava ao seu alcance, e mesmo cogitou se mudar de si mesma (como se isso fosse possível), pois acreditava que o problema era ela. “Estou no endereço errado”, disse ela em frente ao espelho numa noite quente de verão.
Os dias se arrastavam e ela ainda não se sentia diferente. Estava perdida. O que ela poderia fazer? As pessoas começaram a notar uma mudança estranha em Helena – ou já notavam antes, não sei. Mas só agora elas falavam em voz alta: “Você precisa procurar ajuda” – Helena ouviu isso tantas vezes que teve certeza de que ela era mesmo o problema. Ela não negava que precisava de ajuda e até tentou procurar. A verdade, no entanto, era que ela estava com medo. Medo das inseguranças e incertezas que a engoliam. Medo do futuro que, só de pensar, lhe afligia. Tinha tanto medo e medo de tudo, que paralisou. Estava presa. Presa em si mesma.
As pessoas passavam por ela e não a reconheciam. Ela andava cabisbaixa. E sua cabeça parecia ter dobrado de tamanho do tanto que pensava. Helena pensava em como seria bom se sentir em casa, se sentir em paz, se sentir bem consigo mesma, em apenas se sentir. Os seus reflexos na imensa sala de espelhos pareciam ganhar vida e se moviam apressadamente. Eles eram lembretes ambulantes da nova versão de si mesma que Helena precisava alcançar. Todos lhe diziam: “Seja sua melhor versão!”. Helena foi tantas versões de si mesma – mas sempre para os outros, nunca para si –, que se perdeu. Tentou, a todas as custas, atender as expectativas dos outros sobre si, que não lhe sobrava tempo para questionar o que queria.
Por muito tempo, Helena sentiu-se sendo engolida. Engolida pelas muitas obrigações que preenchiam o seu tempo e sua vida; engolida pelas necessidades dos outros que ela tentava tão urgentemente suprir, afinal era para isto que ela servia apenas: para o outro. Helena também nunca gostava de lacunas em sua agenda, pois elas são perigosas. Se houver uma lacuna, Helena pode pensar demais e, nesse vai e vem de pensamentos, ela pode se dar conta de que não é feliz. Isso a amedrontava a ponto de causar calafrios no seu íntimo. As lacunas, além disso, a lembravam que ela não tinha valor. Afinal, Helena era o tanto que fazia, por isso nunca ficava parada. Quando acabava uma atividade, logo arranjava outra e assim a vida seguia.
Por isso mesmo, Helena amava fazer listas de tudo o que queria fazer no dia. Quando o dia se findava, no entanto, e em sua lista restavam ainda atividades, ela não suportava a frustação crescendo dentro de si. No dia seguinte, voltava ao mesmo ponto de partida e tentava mais uma vez, com mais uma lista, com mais obrigações, com mais expectativas para atender, com mais um desejo de se encontrar... e continuava sendo engolida.
Houve um dia que Helena acordou cedo e foi invadida pelo sentimento de que ela não era o problema. As pessoas, sim, o eram. Acreditou, então, que tinha que mudar o mundo. Acreditou tão profundamente nisso que listou tudo o que faria naquele dia. Engajou-se numa lista infinita de afazeres. Entretanto, às 9h, já tinha desistido. Se não conseguiu mudar a si mesma, como poderia ousar querer mudar o mundo? Foi aí que viu: não tinha solução. Ela poderia continuar nessa busca incessante pela perfeição, mas nunca a encontraria, simplesmente porque ela não existe. Todos estão cheios de problemas, todos têm dificuldades que precisam vencer, todos estão lutando para serem melhores, todos estão atrás de algo que não existe.
Helena idolatrou a perfeição, mas, no final, só conseguiu ser uma única coisa: imperfeita. Todos os dias Helena se refazia, ajuntando as pequenas partes de si, como uma colcha de retalhos, como os pequenos pedaços do espelho que outrora se quebrou. Agora, quando Helena se olhava naquele espelho quebrado, os reflexos pareciam ter triplicado. Ela era muitas em uma só. Deu-se conta, naquele instante, que era bonita justamente por isso: por ser tantas em uma só. Enfim deu-se conta que necessitava submeter-se ao alívio da resignação e à dor da conformidade.