Sertão Hoje

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Paulo Esdras

Paulo Esdras é Comunicólogo, Agente cultural, protetor dos direitos dos animais e Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (COMDICA) de Brumado.

Última Lembrança

João Carneiro olhava a seca da caatinga com olhos famintos de criança. Três dias sem que a avó conseguisse nada além de farinha e água salobra do poço. Edite, sua irmã mais nova, já não tinha lágrimas e dormir era o único remédio para esquecer a fome. João caminhou na terra rachada sedenta e viu sua infância ser sugada pelas frestas da necessidade. O futuro era uma chuva distante que nunca chegava e mesmo assim esperavam. Avistou um pássaro verde caído no chão tentando escapar da morte. Viu o sofrimento nos olhos da ave e despertou mais uma vez com o corpo dolorido em cima daquela cama de hospital em seu velho corpo. O tratamento não tinha sido suficiente e estava distante demais de casa, de sua roça, de sua família. Um carro velho chegou próximo à casa e João avistou uma mulher descer e conversar com sua avó materna. Era Olímpia, irmã de João de um casamento anterior de seu pai e morava na cidade. “João, venha conhecer sua irmã, menino!” – gritou sua avó com Edite no colo. Olímpia fez um carinho na cabeça de João e entrou no casebre. Ela era uma mulher muito religiosa e orou a todo momento com a imagem de miséria que vivia aquela família. João com os olhos curiosos de criança viram as roupas bonitas de sua irmã e de seu esposo Miguel. Eles conversavam algo sobre a cidade e ajudar na educação dele e de sua irmã caçula. Despedir-se de sua avó e de seu mundo, apesar das dificuldades enfrentadas ali, foi muito triste. João abraçava sua irmã Edite e se agarrava a um passado que ficaria ali para sempre. Jurou que se encontraria novamente com a sua avó assim que ele soubesse como fazê-lo. Ainda não sabia como, mas o faria. Na estrada de terra, abraçado o tempo inteiro protegendo a irmã, João viu pela janela de vidro um pássaro verde. Um verde cor de sonho, assim como aquele que vira morrer. Voava feliz, parecia até sorrir. Na cabeça de menino João decidiu que era um pássaro apenas que o seguia. As asas eram mais rápidas do que as rodas do carro. Por isso o pássaro conseguia pousar em um galho seco ou em alguma cerca viva e avoar novamente sem perder João de vista. João despertou mais uma vez e viu seu corpo sem esperanças. Viu o pássaro verde na janela. Era o mesmo pássaro, mas era João que o seguia. Após o último suspiro, levantou-se. Nenhuma dor sentia e agora seguiria o pássaro verde. Feliz por ter criado uma linda família e ajudado todos ao redor. “Vamos avoar, pássaro verde!”


* Esta crônica, ‘Última Lembrança’, escrita por Paulo Esdras, foi finalista do prêmio Off Flip 2021