Sertão Hoje

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Fabiano Cotrim

É professor e advogado do escritório "Cotrim, Cunha & Freire, Advogados Associados", em Caetité. Membro da Academia Caetiteense de Letras (cadeira Luís Cotrim), Mano, como é conhecido, gosta mesmo é de escrever poesias, mas, desde os tempos de Maurício Lima, então batucando na sua velha Olivetti Lettera 32, colabora com o Jornal Tribuna do Sertão, sempre nos mandando crônicas.

Crônicas da pandemia - Parte II: Vida de calendário

Vida de calendário não é fácil, e eu acho que não é difícil para qualquer um perceber isto. Primeiro que é curta. Segundo que é chata. É nascer, dar a sorte de ser adotado, e ficar ali, num dia após dia entediante não apenas vendo passar o tempo, mas sendo, fisicamente, o tempo que passa e isto, embora possa não lhe parecer, é um doloroso processo. Imagina nascer contendo em si o tempo que cabe em um ano, oito mil e setecentos e sessenta horas, quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos e os bilhões de possibilidades de acontecimento nesse tempo, tudo marcado na pele de quem? Dos calendários, é claro.

Então, este que vos fala é um calendário de papel. Da espécie mais efêmera, portanto. Sim, como os macacos, evoluímos. De há muito são digitais até os da nossa espécie, permanentes, luminosos e outros tais. Mas eu não. Sou um calendário padrão. Para deixar ainda mais clara a minha origem e jeitão de ser, digo logo. Sou um calendário desses distribuídos pelo Banco do Brasil e também pela Caixa Econômica Federal. De mesa, com o meu corpinho sustentado por um espiral de arame. Reconheceram? Lembraram de mim? Então avante com a estória que o tempo é curto, já disse.

Apois, no começo desse ano, digo no começo, mas foi antes, já que nascemos um pouquinho antes do ano que vamos viver a nossa vida de calendário. Já ali, na gráfica, uma certa depressão me veio. Calendário já nasce sabendo que é calendário, diferentemente dos humanos, que as vezes morrem sem saber que o são. E eu nasci entediado. Dois mil e vinte, pensei, vai ser só mais um aninho desses modorrentos.

E faço um aparte para deixar claro que o tempo, para nós, calendários, é mesmo relativo. Você tanto pode ser um calendário deste ou de outro ano a frente, que ainda virá, como também ser um calendário de anos passados. Eu por mim seria do ano de mil novecentos e sessenta e nove. E queria ser daqueles calendários de bolso, e ter sido largado no meio da lama de Woodstock. Morrer em pleno agosto, mas morrer feliz.

Queria. Mas não foi assim. E começou o tal dois mil e vinte. E não foi como eu pensava. Mal raiou o primeiro dia do ano, minha primeira página exposta na estante da casa em que vivo,localizada em uma cidadezinha dos grotões da Bahia chamada Caetité,e senti um cheiro estranho no ar, um coisa ruim, uns calafrios. Logo de início notei que ganhara importância a minha calendária existência. Todo santo dia o homem me olhava e dizia: hoje o presidente falou merda. Seria esse o cheiro do ano da graça que eu iria servir?

Foi pior. Quer dizer, para mim, muito melhor. Quando marquei o dia nove de fevereiro ouvi pela ´primeira vez a palavra gloriosa; coronavírus. E me deixa explicar logo, antes que vocês saiam rasgando irmãos meus por aí, ou eu mesmo, pois o homem que mora comigo anda meio lelé da cuca nesses últimos tempos. Glória, sim. Não se esqueçam que avisei lá atrás. Quem vos fala sou eu, e eu sou um calendário.

Apois, nunca antes na história desse país, de qualquer país, vivemos dias de tanta glória. E com a glória veio o poder, e com o poder a vingança cruel. E tudo isto, este apogeu, esse êxtase, esse gozo profundo, para nós, calendários unidos do universo é resultado do advento do coronavírus, o nosso herói. Sim, agora nos transformamos em seres admiradospelos humanos. Todo dia, sem falhar um, eu, por exemplo, tenho sido acariciado, reverenciado, temido até, aqui em casa. E assim acontece mundo afora, que temos o nosso próprio sistema de informação.

Uns nos “olham com os olhos cheios de esperança de uma cor que mais ninguém possui”, chega dar um dó. Dizem, vai passar. Antes do dia tal, vai passar. Levanta o moral, não escondo, ver quem praticamente nos desprezava agora gemer de dor na nossa frente, as mãos tocando os nossos corpos em tortuosas, mas afetivas linhas. E não me tomem por mesquinho que eu tenho sentimentos. Mas para quem nada valia e agora vale, qualquer prazer o diverte. E diversão não é o que tem faltado. Morro de rir toda vez que um deles me olha e diz com cara de espanto: Já é quinta-feira? Hoje é domingo? E os feriados, que agora podem ser em qualquer um dos meus dias?

Termino dizendo que só disse o que disse para vocês ficarem sabendo que eu existo, eu, o calendário aqui da estante. Enquanto durar o vírus temido, por você, amigo nosso, estarei no controle absoluto da sua vida e vou bagunçar a vera. Falar nisso, seu aniversário é que dia mesmo?

Mano. 24.05.2020